Voltando para casa, entrei em um ônibus quase que por vontade alheia. O motorista abriu as portas e então bastou ensaiar uma entrada que, junto comigo, molhado, outra dezena de pessoas , molhadas, completaram o espetáculo. No entanto, estava em um dia de sorte - acontecimento nada rotineiro - e encontrei um assento vago antes da catraca. Não iria descer tão cedo e mesmo que tivesse que descer, sentaria; costuma ser o melhor lugar de um ônibus. Pode ser que o motorista, já entediado diante dos quilômetros de asfalto, faça piadas sobre o que vê pelo transito, ou xingue de forma engraçada os motoqueiros que passam azucrinando. algum velhinho pode sentar-se ao meu lado e começar a contar histórias, tão cheias de memórias, pois, de fato, os velhinhos são muito bons de papo e nunca se sabe, ao certo, o que esperar dos primeiros lugares de um ônibus cheio.
Nada disso aconteceu. Apenas fiquei sentado, ouvindo música. Em alguns momentos tirava os fones de ouvido como um movimento de esperança para tentar ouvir algo ou escutar algum xingamento e torcia o bico diante do mormaço de um ônibus chuvoso, mas nada parecia sair de boca alguma e o tédio, molhado, arrastava o tempo e o espaço. Todos amassados, amontoados, cansados. Quinta-feira-chuvosa.
E de repente, ao meu lado, uma senhora sentou. Perfumada, lembrava-me àquelas avós de contos que lia na infância. Carregava um saco de suspiros e os comia com tamanha graça que eu rejuvenescia dois ou três anos a cada suspiro que ela retirava do pacote e levava até a boca. Quando eu já estava muito aquém de puberdade, ela levantou os braços e falou: "Que caloooor!". E todos riram e, finalmente o motorista disse: "Tem razão. Puta que o pariu! Que calor!". E a senhora, encabulada e com um suspiro na eminência da boca, olhou para o motorista com evidências de reprovação. Todos, outra vez, riram. A velhinha, não molhada, fazia com que as rodas andassem mais rápido, acordava o cobrador e, colorida, despertava a atenção daquela massa amorfa e molhada que sacolejava, vez ou outra, em curvas mais fechadas. E todos, novamente, riam.
“Todos”, assumo, foi um erro. Um velhinho, do outro lado do corredor, não esboçava prazer com toda aquela graça. Lia um jornal amarrotado e, de vez em quando, olhava as horas em seu relógio; não se pode ser feliz encarando um relógio a cada cinco minutos.
E, então, os suspiros foram largados ao meu lado – relutei para não tocá-los – e a senhora, suspirando, voltou-se para o velhinho do jornal, talvez de mesma idade com menos suspiros e mais espiadas ao relógio.
- O senhor não se importa de abrir um pouco essa janela?
- Não. Não.
- Coisa pouca. Um palminho, nem isso.
- Não. Não. De fato...
- O senhor não sente, mas o ar daqui está viciado. E essa chuva...
- De fato, minha senhora. De fato.
- Obrigada.
- Magina. Magina.
A janela foi fechada pelo velhinho que amassou o caderno de esportes e, disfarçadamente, olhou por mais uma vez os ponteiros de seu relógio que haviam andado apenas o espaço de cinco minutos. Abafado e sólido, nem por isso o ar deixaria de ser viciado. Estamos em São Paulo, estamos em 2008 e aquela velhinha comendo suspiros não pertence a espaço ou data alguma – quanto mais a estes. O ônibus seguiu lotado pela Consolação, a velhinha terminou seus suspiros, o velhinho leu todo o caderno policial, atravessei a catraca, desci no ponto de sempre e cheguei um pouco mais jovem em casa. Dias chuvosos são agradáveis à leitura, ao ócio e aos suspiros.
Nada disso aconteceu. Apenas fiquei sentado, ouvindo música. Em alguns momentos tirava os fones de ouvido como um movimento de esperança para tentar ouvir algo ou escutar algum xingamento e torcia o bico diante do mormaço de um ônibus chuvoso, mas nada parecia sair de boca alguma e o tédio, molhado, arrastava o tempo e o espaço. Todos amassados, amontoados, cansados. Quinta-feira-chuvosa.
E de repente, ao meu lado, uma senhora sentou. Perfumada, lembrava-me àquelas avós de contos que lia na infância. Carregava um saco de suspiros e os comia com tamanha graça que eu rejuvenescia dois ou três anos a cada suspiro que ela retirava do pacote e levava até a boca. Quando eu já estava muito aquém de puberdade, ela levantou os braços e falou: "Que caloooor!". E todos riram e, finalmente o motorista disse: "Tem razão. Puta que o pariu! Que calor!". E a senhora, encabulada e com um suspiro na eminência da boca, olhou para o motorista com evidências de reprovação. Todos, outra vez, riram. A velhinha, não molhada, fazia com que as rodas andassem mais rápido, acordava o cobrador e, colorida, despertava a atenção daquela massa amorfa e molhada que sacolejava, vez ou outra, em curvas mais fechadas. E todos, novamente, riam.
“Todos”, assumo, foi um erro. Um velhinho, do outro lado do corredor, não esboçava prazer com toda aquela graça. Lia um jornal amarrotado e, de vez em quando, olhava as horas em seu relógio; não se pode ser feliz encarando um relógio a cada cinco minutos.
E, então, os suspiros foram largados ao meu lado – relutei para não tocá-los – e a senhora, suspirando, voltou-se para o velhinho do jornal, talvez de mesma idade com menos suspiros e mais espiadas ao relógio.
- O senhor não se importa de abrir um pouco essa janela?
- Não. Não.
- Coisa pouca. Um palminho, nem isso.
- Não. Não. De fato...
- O senhor não sente, mas o ar daqui está viciado. E essa chuva...
- De fato, minha senhora. De fato.
- Obrigada.
- Magina. Magina.
A janela foi fechada pelo velhinho que amassou o caderno de esportes e, disfarçadamente, olhou por mais uma vez os ponteiros de seu relógio que haviam andado apenas o espaço de cinco minutos. Abafado e sólido, nem por isso o ar deixaria de ser viciado. Estamos em São Paulo, estamos em 2008 e aquela velhinha comendo suspiros não pertence a espaço ou data alguma – quanto mais a estes. O ônibus seguiu lotado pela Consolação, a velhinha terminou seus suspiros, o velhinho leu todo o caderno policial, atravessei a catraca, desci no ponto de sempre e cheguei um pouco mais jovem em casa. Dias chuvosos são agradáveis à leitura, ao ócio e aos suspiros.